sexta-feira, 27 de março de 2015

Não, o esporte não legitima sua estupidez.

Há muito acompanho futebol. Há muito frequento estádio. Para ser mais precisa, tudo começou lá em 1999, quando meu pai me levou pela primeira vez ao Maracanã. Eu tinha 6-7 anos, pouca coisa entendia acerca daquilo, e não fazia a menor ideia de que aquela prática e aquele ambiente se tornariam uma das maiores paixões da minha vida.

Das poucas lembranças que tenho de minha "segunda infância", essa ida ao Maracanã é uma das mais emblemáticas. Sobre o jogo em si, não tenho muito o que falar. O que eu sei é que me envolvi, principalmente, por aquele "mar de gente" e suas reações exaltadas, suas expressões faciais expressivas, os gritos e cantos à plenos pulmões. Tenho a teoria de que aprendi meus primeiros palavrões nesse dia. 

Passei a torcer pelo Fluminense e cresci ouvindo que a minha torcida era torcida de viado. Descobri que a alcunha do meu time era "Florminense", o que fazia de nós os "flores". Paralelamente, meio sem perceber, já estava chamando meu rival de molambo e rindo das provocações que permeavam o futebol. Achava tudo natural, muito em função do meu pai, o meu "modelo e referência", bradar todas essas coisas sem nenhum tipo de constrangimento. Daí, meu raciocínio era simples: se meu pai fazia, provavelmente não era algo ruim, não é?

Mas os anos se passaram, e com eles, minhas ideias de mundo, minhas opiniões, minhas perspectivas foram mudando. Percebi que meu comportamento no estádio começava a ser um paradoxo diante das coisas que acreditava e pregava. Como lutar diariamente por isonomia e protagonismo para os LGBTs, se ao vestir a camisa do meu time e pisar no Maracanã, eu direciono um raivoso grito de "viado!" para o árbitro, na tentativa de ofendê-lo?

Escrevo este texto inspirada na atitude da jornalista Gabriela Moreira, da ESPN. Ao abordar um torcedor palmeirense perguntando sua expectativa para o jogo contra o São Paulo, a repórter ouviu como resposta: "vamos ganhar dos bichas(...)". Imediatamente, a repórter interveio dando uma bela resposta: "não à homofobia, né? vamos tentar modernizar um pouco esse pensamento".


Não, nenhum esporte legitima sua estupidez. Nenhum esporte funciona como justificativa para você ser um boçal. O futebol não é um universo paralelo, onde todas atitudes infames se tornam permitidas. Precisamos cair na real e parar de naturalizar gritos preconceituosos e alcunhas homofóbicas. Isso não é do jogo. Isso não é do futebol. O esporte não dá carta branca para ser, dentro dele, aquilo que "não se pode ser" lá fora, no dia a dia. 


A violência dentro dos estádios, pouco combatida e pouco investigada, permite que torcidas se degladiem livremente. O combate à crimes ligados ao mundo do futebol acontece de modo muito mais ameno. Ilustrando isso, o caso recente de pancadaria generalizada entre torcedores de Atlético-PR e Vasco da Gama: muitos torcedores envolvidos já tinham antecedentes criminais, mas não ficaram presos nem um mês, além dos inúmeros foragidos. 

TO's envolvidas em brigas dentro ou nos arredores são banidas de frequentar o estádio, mas seus membros não são identificados individualmente. A agremiação é banida, o torcedor não. Sem essa investigação minuciosa, o torcedor que briga segue frequentando o estádio normalmente, apenas sem portar seu uniforme de organizado. Fácil, não? Isenção surreal e absurda, oriunda da falta de seriedade no modo de encarar esses crimes.


Episódios recentes de racismo no futebol ganharam grande repercussão na imprensa. Os casos do volante Tinga e do goleiro Aranha causaram grande comoção, de modo à desencadear grandes campanhas contra manifestações racistas nos estádios. Entretanto, no que diz respeito à investigação e punição, nada, de novo. Apesar de indiciados por injúria racial, os torcedores envolvidos no caso do goleiro Aranha conseguiram acordos com a Justiça e não foram presos. 


A imagem da torcedora Patricia Miranda bradando o grito de "MACACO!" repercutiu por semanas a fio, causando, de maneira geral, grande revolta entre as pessoas. Entretanto, não foi difícil encontrar gremistas tentando relativizar o ato da torcedora, talvez na tentativa desesperada de blindar o seu clube. 


É essa relativização que preocupa. Essa forma blasé de encarar o racismo e/ou a homofobia no esporte denota certa desumanidade e total ausência de valores morais. 


Cante pelo seu time. Provoque seu rival. Tudo isso é possível sem precisar recorrer à apelidos grotescos, à recursos ofensivos, ao "bicha!" a cada tiro de meta, ao "camisa feia, cheia de cor, todo viado que eu conheço é tricolor!", ao "bambi", ao "mulambo", ao "macaco", e afins.


Acredite: isso não é uma tentativa de burocratizar o futebol ou esporte. Isso é uma tentativa de melhorar a sociedade em que vivemos.